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A xícara

Não se sabe como ela surgiu na cristaleira. Não fazia parte de um jogo. Era filha única, trofeuzinho irritante. Fosse qualquer pessoa que tivesse colocado aquela feiúra ali, teria “acidentalmente” se quebrado. Não era. A dona da xícara nascera sob o signo de leão e, mesmo que não fosse uma fera, todos se rendiam àquele reinado.

Imagine a ousadia daquela pecinha ridícula em meio à louça dos anos 50. Material vulgar, sabe? Colocada abaixo do conjunto de taças de champanhe de cristal, ficava na altura dos meus olhos. Os adultos enxergavam taça de cristal.

Dos meus três tios, só o Marcelo se importaria. Jogava futebol na quadra do Bonitão uma vez por semana. Porém, ele não disse nada. Não me lembro de nenhum protesto da minha mãe. Do meu pai, então, que era o genro puxa-saco não se podia esperar a perguntinha mágica mesmo.

Então eu perguntei:

– Vó, onde você arrumou essa xícara do Atlético?

– Eu ganhei.

Ela sempre me dava detalhes em suas histórias. Histórias sempre fantasiosas, e que, evidentemente, me fizeram amar histórias.

– Ganhou de quem?

– Não me lembro…Sabia que o galo é o símbolo de Portugal?

– Só que esse é do Atlético, vó! Não somos atleticanos.

– Eu sou.

Não houve pausa para o momento dramático “meu mundo caiu”. Da onde Dona Celinha tirou essa? A xícara estava evidente: depois de tomar o cafezinho na casa de alguém, enfiou na bolsa (aquela lotada de mudas de plantas que ela tirava dos jardins alheios).

À noite, enquanto ela fazia tricô e meu avô Azevedo via o jornal, perguntei/ dedurei em tom solene:

– Vô, você sabia que a vovó virou atleticana?

Ele não era de muitos detalhes. Nesse momento, o craque celeste nascido sob dois signos – tinha três registros – se mostrou ariano como eu.

– Ela não é atleticana, ela é do contra!

Vovó seguiu seu tricô com ar de desdém.

Os dias seguiram com aquela xícara nos insultando.

Vovô mantinha sua postura de homem de peixes, tolerante. Ele fazia o café da manhã. Imagino, pode ter servido um bem ralinho – que era como ela gostava – ali. Contudo, isso talvez fosse um segredo dos dois. Não posso confirmar minha tese com precisão.

Ele morreu, ela morreu, meus dois tios morreram.

Minha mãe levou a cristaleira para casa.

Advinha quem foi junto?

xicaradois

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Querida Vovó,

Eu queria muito manter este blog atualizado. Publicar suas receitas, relembrar com mais clareza suas histórias (a medida que o tempo passa, confundo a realidade com o que a memória, às vezes, inventa)…eu queria muita coisa, e nesse pacote de quereres, você ainda estaria aqui ao meu lado.

Sabe vó, eu imaginava que a essa altura da vida eu seria craque em papinhas, por exemplo. Minha mãe conta que eu fazia cara feia para os potinhos da Nestlé e me esbaldava com sopinhas de cará, cenoura e músculo feitas por ela. Aposto que é genético.

Eu achava que depois dos trinta haveria uma mesa a ser posta para a minha família. Pode ser que existe um dia, pode ser que não. Saiba, no entanto, que estou bem. Esse ideal não seria necessariamente mais feliz, seria apenas diferente.

Eu não te disse isso, mas se eu tiver uma filha ela terá seu nome. E me entristece saber que você não vai para curar o umbigo dela. Porém, eu me recordo da sua recomendação à mamãe: assim que cair, jogue no telhado para que a menina cresça bonita.

Vou anotar a terrível história do Pai Pió, com musiquinha e tudo para contar.  Se não para a Celinha (se for menino vai ser chamar Thom), para meus sobrinhos ou afilhados (não tenho nenhum). E posso ser um dia craque em papinhas como a mamãe era (certamente, você ensinou).

Enquanto sou o que sou, vou sendo um pouco você: invento minha própria receita todos os dias. Rabisco o que está no livro, troco o ingrediente principal pelo que me apetece e monto uma mesa linda para mim mesma.

Tem nome – “mesa para um” – e foi citado neste espaço o meu projeto de tornar o suflê de chuchu um prato individual. Algumas de suas criações me desafiam: Como fazer o roast beef  super amanteigado virar “single”? Até uma simples porção de pipoca possui uma matemática complexa, se tiver que caber somente num saquinho. Embora o cálculo não seja meu forte, eu chego lá.

Saudades imensas de você, vó, hoje e sempre.

Da sua bonequinha russa, Ludmila.

Imagem,

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Pinheirinho, luzinhas e todo gostinho da expectativa…

1950s xmas Paulette GoddardEssa época do ano chama-se saudade e o gosto é doce.

Comprei minha primeira árvore de natal. Faltam as bolinhas, que serão vermelhas e tradicionalíssimas. Talvez eu monte um presépio também.

As luzinhas que hipnotizavam o vovô estão ligadas. Há velas, anjos e guirlanda.

Já pesquiso uma receita diferente para o peru e hoje “assuntei” o preço de castanhas, nozes e frutas secas no mercado.

Dezembro é para a casa ficar cheirosa, com brilho e barulho porque de alguma maneira vovó está aqui comigo em cada ritual.

Neste post não há comida ainda…apenas a ideia do cardápio no ar.

Neste post há a lembrança da caixinha com enfeites, a neve de mentirinha e todo cuidado com o Menino Jesus, que ficava guardadinho e só se deitava no bercinho na madrugada do dia 24.

O cheiro da casa deles no natal…ainda que se passem anos que não passamos juntos está aqui, amadeirado.

Pela primeira vez na vida eu monto sozinha a árvore, um pinheirinho pequeno. Estou sozinha.

Porém meu coração está tranquilo e repleto de felicidade porque eu sei que os melhores avós do mundo jamais me deixarão esquecer da importância dessa época também chamada magia.

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Frugalidade

Num voo BH-São Paulo, peguei a revista de bordo, mas não li  – como habitualmente faço. Preferi meu livro, que desejo que chegue logo ao fim porque a minha fila está extensa. No entanto, tive a curiosidade de dar uma olhadela para saber se punha na bolsa ou deixava por ali mesmo.

Na revista, um perfil da Palmirinha Onofre. Sempre que a vejo, me lembro um pouco da vovó. Elas tem estilos muito diferentes (Celinha foi criada numa família mais sofisticada, por assim dizer), embora prezem a mesma essência: com simplicidade na cozinha se faz poesia e afeto.

Vejo minha geração querendo ser Jamie Oliver ou Nigella – eu adoro os dois e queria ter um tiquinho do talento de ambos – enquanto a Palmirinha, a Ofélia, a Vovó não quiseram nada além de se deliciar com a família reunida na mesa, de olhos fechados com êxtase imensurável a cada garfada.

Podia ser uma farofinha de ovos, um franguinho suadinho, um pudinzinho  (vovó dizia tudo no diminutivo e eu me pego fazendo o mesmo vira e mexe). Existe uma assinatura que, mesmo fazendo tudo como elas ensinaram, não é a mesma coisa.

E me pergunto: qual será minha assinatura?

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Tirando a poeira

Não gosto do abandono deste blog, que fique claro. Ele foi criado pensando numa das pessoas mais incríveis que conheci nesta vida. Além de me fazer gostar de cozinha, encheu minha vida de histórias únicas e muito, mas muito amor.

A cozinha da Celinha precisa voltar a exalar aromas pela casa, descobrir e redescobrir receitas. Esse post é um manifesto contra minha correria, o freezer e o micro-ondas (itens que vovó se orgulhou em não ter).

Há duas semanas estive na casa dela  (agora, mais do que nunca, uma memória) para esvaziar armários. Depois da morte do meu também amado tio Marco, foi a vez de lidar, enfim, com o legado dela e do vovô Azevedo.

Louças, cristais, panelas e milhares de parafernálias culinárias ficaram guardados desde que Celinha foi para o céu, em 1999. Imagine encontrar a latinha de tesouros que a Amelie Poulain achou?

Me senti assim ao descobrir o liquidificador, os fouets, as forminhas de biscoito, a máquina de fazer massa, os bicos de confeiteiro…

Quis ter mais tempo para preparar bolos de baunilha, souflês, vitaminas e sobremesas…quis que ela tivesse mais tempo aqui para me ensinar também o crochê, o ponto de cruz…quis que meu tio desejasse estar neste plano por mais tempo também…

Infelizmente, não sou a senhora do tempo. E ele corre como quer, independentemente da minha vontade, da minha intenção…

Reunindo o material que Celinha utilizava para transformar um simples chuchu num manjar dos Deuses, prometi para mim mesma me organizar para estar sempre por aqui: homenageando ela, meu avô, meus tios Marco e Fábio. Todos estarão sempre doces nas minhas lembranças.

Quanto aos outros sabores, vou levar para minha cozinha,  para minha pequena família (como o Marco revelou dias antes de partir) e para meus amigos do coração. Dietas, corre-corres, desânimos não são desculpas para eu deixar de lado meu tesouro.

 

 

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Cozinha para um

A maioria das pessoas que conheço não gosta de cozinhar apenas para si. Cozinha é para compartilhar e ouvir elogios. Claro que por mais que saibamos que somos bons pilotando um fogão, faz falta a tal opinião alheia. Mas vovó me ensinou opções básicas e saborosas para uma mesa sem acompanhantes. Não sou do tipo – nem ela era – que precisa de miojo na hora do aperto. Omeletes, massas,  saladas, sanduíches diferentes – como o que eu fiz hoje com shimeji – entram no pacote. Por isso, se há algo na minha lista de desejos do ano que começa é esta linha retrô.

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Os preparativos

A verdade é que o natal sem a Vovó Celinha e o Vovô Azevedo ficou opaco. Se havia uma data que os dois amavam era essa. E, se aqui estivessem, a família Azevedo não estaria no impasse do amigo oculto ou presentinhos, por exemplo. Essa definição já existiria há pelo menos um mês antes de 24 de dezembro.

Vovô ficava igual criança olhando para a árvore – que não era um pinheirinho, mas a “desgraça pelada” – era capaz de perder horas no piscar das luzinhas e sempre achava que poderíamos ter mais enfeites. Era uma tradição dele comprar uma cesta tão caprichada de “coisinhas de uma vez por ano”, assim como se preocupar com o presente dos netos.

Vovó adorava montar o presépio. Certa vez, perguntei por que o Menino Jesus não ficava no bercinho, pois ele ficava nas casas das outras pessoas. Ela dizia que ele não havia nascido ainda e que todos estavam errados de deixá-lo lá. E depois do dia 25 de dezembro até o dia de Reis lá estava ele com seus bracinhos abertos.

Natal era o evento do ano. A gente sempre vestia a melhor roupa, ficava implorando para abrir os presentes antes da meia-noite (e o Vovô Azevedo sempre deixava) e comia bastante.

O menu da ceia sempre foi bem tradicional: pernil, peru, chester, farofa, arroz, frutas, castanhas, rabanada e pannetone. E como achassem que era pouco, ficávamos com aquele gostinho alguns dias depois.

Quando havia polêmica na escolha do cardápio, como o leitão à pururuca, dona Celinha logo sentenciava: “vou fazer um franguinho assado mesmo, mais simples”. E a gente retrucava que comida de domingo não era comida de natal.

Uma data que só me traz lembranças deliciosas – porque compartilhei com duas das pessoas mais doces desse mundo – não pode passar em branco. Devo isso aos meus avós que sempre foram delicados com tudo que diz respeito a compartilhar. Tanto que ficou o legado de deixar na árvore um presentinho básico para quem aparecesse de última hora.

Não montamos árvore ainda e só agora me dei conta de como isso é inaceitável.

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Com acento circunflexo

Minha avó fazia bôlos. Em suas anotações, o chapeuzinho estava sempre lá. Herdei, inclusive, livros com receitas variadas e acentuadas. Gosto de fazer bolos. Bato a massa à mão e quase nunca deixei solar. No colegial eu tinha uma fabriquinha em casa e uma sócia, a Bia, onde fazia bolos diariamente para vender. Eram um sucesso e garantiam uma graninha para sair no final de semana e comprar meus vinis.

Vovó adorava meu bolo. E quitandas em geral. Acho que mamãe principalmente puxou dela o gosto pelo quitute. Toda semana compra um bolinho diferente e come com muita manteiga.

Essa semana fiz bolo de maçã e de chocolate. Adoro o cheiro que se espalha pela casa: cheiro de conforto, de fim de tarde e de carinho.

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Parabéns Vovó Celinha

Hoje Vovó faria aniversário. E se estivesse por aqui, eu assaria um souflê. Dona Celinha foi a responsável por este ser um dos meus pratos favoritos. E, justamente, aquele de que mais gosto é o de chuchu. Podem achar que o legume é sem graça, mas nas mãos dela, tudo ganhava sabor especial. Lembro-me com carinho dela batendo a clara em neve com um garfo. Honestamente, proeza para pouquíssimos. Ficava numa nuvem perfeitinha que cobria a mistura de chuchu, ovos, manteiga e queijo. Simples, delicioso e tão confortável que sempre preparo quando estou triste. A grande diferença é que uso batedeira.

Não sei se eu terei o talento da Vovó. Sei que tento imitar.

Eu também prepararia um grande bolo de chocolate para ela. De quebra, levaria pastéis de Belém e quindins para a festa. Tudo que não pode, porém tudo que o aniversário permite. Dona Celinha, como eu, é do elemento fogo. Leonina, sempre o centro das atenções, quando ela resolvia brilhar não tinha para ninguém.

Olhando para o céu, procurei a primeira estrelinha da noite. Foi como se eu repetisse com ela: “primeira estrelinha que vejo, realize meu desejo”. Só não poderia apontar porque senão nascia uma verruga no dedo (eu até hoje acredito piamente em todas as histórias dela). Enquanto caminhava pelas ruas do Santo Antônio como uma criatura excêntrica carregando a batedeira para ter o souflê à disposição nos momentos em que a saudade aperta, me surpreendi com a lua.

E pensar que de manhã acordei cantarolando a música que a Celinha mais amava. A Noite do Meu Bem.

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Bife “ali na mesa” e os negocinhos de uma vez por ano

Quando éramos crianças – e havia “fiscal do Sarney” – minha irmã e eu “economizávamos” sabores. Era um danete por semana (eu guardava o meu para sábado e a ela seguia os dias secando minha sobremesa), um engradado de yakult também (cada garrafinha era bebida em dias alternados). Não havia essa banalização de geladeira cheia de coca-cola e sorvete ou palmito em qualquer comida a quilo. Palmito, aliás, era muito caro. Tão caro que Uiara chamava de “negocinho de uma vez por ano” para sensibilizar meus pais a comprarem sempre que podiam. Adorávamos quando a superfície estava durinha e não podia ser aproveitada na salada. Mastigávamos os palmitos como se fossem cana-de-açúcar.

Meu “negocinho de uma vez por ano” era aspargos.

Só que um dia a vaca foi para o brejo, literalmente. Faltou carne nos açougues e quando havia, o preço estava na estratosfera. Bife passou a ser item de luxo, algo para se comer raramente ou quando o Sarney deixasse (pausa para a metalinguagem: eu era como a garotinha de “A Culpa é do Fidel” e apontava, desde aqueles tempos,  para os políticos por toda e qualquer privação).

Como eu iria passar sem o bife à milanesa da Vovó Celinha?

Bife à milanesa era algo que eu adorava comer na casa dela. Além dos melhores e mais crocantes, eu ajudava a empanar. E brincávamos com as palavras, rebatizando-o de bife ali na mesa. Era um para cada.  Só que sempre,  claro,  dona Celinha preparava pequenas  duplas para os netos. Assim, tinhamos a certeza de que só a gente podia repetir.

Hoje vi uma foto de um bife à milanesa na internet e me deu uma saudade daquele gostinho, dos acompanhamentos que ela fazia como o purê de batata e as ervilhas na manteiga (chamadas por vovó de petit pois). Fiquei um pouco melancólica porque acho que a última vez que comi um bom bife à milanesa caseiro foi preparado por ela. Bife à milanesa é muito coisa de avó e eu espero um dia fazer duplinhas tão incríveis como as dela.

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